Um belo dia, tive um daqueles ataques típicos de mãe. Como sempre, eu tinha trabalhado o dia todo, corrido para buscar minhas filhas na escola, já tinha dado banho nas duas, estava preparando seu jantar e elas na minha cabeça, sem parar: “mãe, eu quero isso”, “mãe, me dá aquilo”, “mãe, olha a minha irmã!”, “eu que vou sentar perto da mamãe”, “não, sou eu”. Sei que uma hora dei um grito: “Ai, eu quero ter duas cabeças, quatro braços, quatro pernas… Uma mãe só para vocês duas, não dá!”. Daí nasceu a ideia de escrever o meu primeiro livro: Suriléa-mãe-monstrinha.
Lembro-me exatamente de quando me tornei uma viciada em leitura. Faz muuuuiiito tempo. Eu tinha 15 anos e, após uma cirurgia de garganta meio traumática, passei uma semana de cama, sem conseguir comer nem falar. Minha mãe me deu um caderninho para que eu pudesse me comunicar. E livros, muitos livros. Li muito nesses dias. E nunca mais parei. Acho que se hoje sou escritora, devo muito ao meu grande amor pela leitura.
Com 17 anos, fui embora para a França. Era uma época tenebrosa no Brasil, que vivia sob uma ditadura militar. Nada se podia fazer, nada se podia falar, nada se podia ler. Eu estudava numa escola pública de vanguarda e me envolvi, como muitos de meus colegas, com os movimentos que lutavam contra a ditadura. Fui embora para não ser presa, imaginando poder voltar em poucos meses. Fiquei cinco anos. Na França, terminei o colegial e me formei em Filosofia. Morar fora, aprender uma nova língua, me virar sozinha, adquirir uma férrea disciplina de estudos ampliou muito meus horizontes e me ajudou a tocar a vida.
Quando voltei ao Brasil, a ditadura continuava, mas começava-se a vislumbrar uma luz no fim do túnel. Eu estava formada, meu marido, ainda não. Ambos queríamos continuar estudando e escrever. Fomos procurar emprego em jornais. Ele conseguiu, eu não. Foi a primeira sensação forte que tive de que ser mulher me colocava em desvantagem. Fui cursar pós-graduação em Ciência Política, fazia bicos de tradução e pesquisa, fiquei grávida… e aí, adeus emprego, pois quem é que contrata mulher prenha?
Ter filhos – tenho duas – foi maravilhoso. Ao mesmo tempo, foi um choque perceber que por mais que fôssemos jovens e revolucionários, não entrava na cabeça dos homens que um casal deve dividir igualmente os cuidados com os filhos. E eu me envolvi de corpo e alma com o movimento de mulheres que começava a se organizar no Brasil e que lutava para mudar a situação da mulher e pela volta da democracia.
Com duas filhas pequenas para sustentar, o sonho de continuar estudando e conseguir um emprego em que pudesse trabalhar com pesquisa e escrita foi pro beleléu. Passei alguns anos fazendo um trabalho burocrático numa editora e outros tantos como assessora política nos primeiros anos de governo democrático em São Paulo.
Com o lançamento do meu primeiro livro, tomei coragem para me dedicar de corpo e alma a escrever livros infantis e juvenis. Meus livros refletem bastante a minha experiência de vida. Muitos deles tratam de questões que sempre me mobilizaram como as desigualdades sociais, o racismo, a discriminação da mulher.
Percebi também, logo que comecei a escrever, que de nada adiantava ter bons livros, se, de um lado, uma boa parte da população não tinha acesso a eles e, de outro, as escolas muitas vezes não estavam preparadas para trabalhar com os livros. Vi casos incríveis de livros guardados há tempos na diretoria de escolas por causa do medo de que as crianças os estragassem!
Então, durante um bom tempo, me dediquei também a juntar pessoas e, coletivamente, bolar e desenvolver projetos de incentivo à leitura que pudessem ajudar a reverter essa situação.
Quero terminar essa apresentação dizendo que uma das coisas que mais me diverte e fascina é ver meus netos crescerem e curtirem cada vez mais livros e histórias.